Nesta segunda parte da série "Os Sons da Revolução: os actores da música e cultura populares entre 1961 e 1975", expõe-se alguns dos pontos de vista de Ruben de Carvalho [20] e Manuel Rocha [21] registados numa sessão de debate que o Mural Sonoro organizou e conduziu no Museu da Música com o tema: «Música e Política» a 31 de Maio de 2014, assim como procura, através das entrevistas realizadas e do convívio com estes agentes (intérpretes, autores e compositores), apresentar alguma da sua abordagem aos acontecimentos não só políticos como culturais e da indústria considerados relevantes – das suas práticas, dos repertórios musicais – tendo em conta as noções temporo-espaciais que os acompanha.
"Música e Política" Segunda Parte from ARQUIVO MURAL SONORO.
Soraia Simões (MS) a Ruben de Carvalho (RC): Situando-nos, até porque nos outros debates situamo-nos no período que antecede, 20 anos antes, e vai até ao 25 de Abril, e hoje começo em 1975, pergunto ao Ruben, porque havia de certeza valores a negociar na prática jornalística, como é que eram essas relações, o tipo de discurso que se usava, etc?
RC: Em primeiro ligar quero dizer que eu estou inteiramente de acordo com o que diz o José Mário Branco de que a «música está comprometida com uma realidade social», só que se isto é verdade há outra coisa que também é verdade, é que as sociedades não são realidades estáticas. Portanto, a partir do momento em que uma sociedade se modifica, uma realidade que com ela estava comprometida obviamente que se modifica também. A evolução da música é paralela no essencial à evolução da sociedade. A cada estádio da sociedade corresponde um determinado tipo de evolução das formas mais indirectas (...). A mudança das sociedades obviamente que se reflecte na música das mais variadas formas, portanto não fico nada surpreendido que em relação há música tenha existido uma diferença do antes do 25 de Abril e do depois do 25 de Abril. A meu ver não houve uma, houve várias, e por vezes até de sentidos contraditórios. Dizer que a música está sempre comprometida socialmente não é sinónimo de compromisso político...
MS: Ou ideológico...
RC: Sim, ou ideológico. Não é sinónimo. A música reflecte o universo social em que está, mas a deliberação que corresponde à intervenção política pode não estar lá presente. Nem toda a gente tem intervenção política excepto aquela que inevitavelmente se tem quando se não tem. Que é uma intervenção política também. Talvez cinco anos a seguir ao 25 de Abril foi um período em que frutificou um determinado tipo de canção declaradamente política e interventiva politicamente, que se foi atenuando e, perante até a perplexidade de algumas pessoas, por dois motivos, em primeiro lugar porque não passou tanto tempo como isso e por conseguinte há pessoas que ainda se recordam, não é nada que tenha acontecido no ano passado, aconteceu há quarenta anos e ainda há muita gente viva felizmente, por outro lado, olhando para a realidade, se havia razões em 1960 ou em 1975 para que existisse aquela forma de expressão, elas agora não faltam e de resto cada vez mais (...).
O que intervém politicamente não é a música é a palavra. Quando nós falamos na «canção política» nós não falamos de «sinfonias políticas», embor as haja, nós não falamos de «concertos políticos», embora os haja, mas até muitas vezes a própria assimilação do carácter e da essência política de um tema musical é mais laboriosa do que é do elemento fundamental de comunicação na sociedade que é a palavra. Se nós verificarmos quando falamos de «canção de protesto» nós não estamos propriamente a falar da música da canção de protesto, estamos antes de mais nada a falar daquilo que a canção de protesto dizia e dizia com as palavras suportadas por música. Obivamente que havia uma adequação da música aquelas palavras.
MS: Mas, Ruben, isso acontece, pegando na ideia do GAC (Grupo de Acção Cultural) que o Manuel falava, aí é notoriamente, há músicas até datadas só não são porque os tempos se repetem e elas voltam a fazer sentido, porque as letras são explicitamente isso: uma denúncia com o sistema vigente, mas depois há um outro lado, de músicas que foram aproveitadas nessa época que se nós as escutarmos pouco têm na sua mensagem, na letra, de insurreição contra o que se estava a passar, aí há também uma negociação? Era isso também que lhe tentava perguntar.
RC: Há várias famílias na «canção portuguesa» nestas décadas, entre 1960 e 1970, já antes do 25 de Abril isso se verificava e curiosamente isso até se manifestou no 25 de Abril. Quando chega o 25 de Abril o Manuel falou e, muito bem, na existência dominante não hegemónica mas dominante do «nacional-cançonetismo» e isto não surgiu por acaso. Isto foi uma medida deliberada por parte do poder, por parte do regime fascista, como foi tudo que com isso se relaciona, que temos de stiuar na época. O regime fascista surge em 1926, o princípio da década de 20 é também o do desenvolvimento da telefonia sem fios e do disco. Note que a gravação discográfica foi feita pela primeira vez ainda no final do século XIX, mas é já no século XX que a técnica da gravação discográfica adquire formas que permitem a gravação em grandes níveis. Começou-se com o cilindro até chegar ao disco redondo de 78 rotações até chegar ao perfurar de furos de maior ou menor profundidade de maior ou menor intensidade conforme a intensidade do som que era captado pela agulha que fazia o furo. Esta situação é uma situação de grande debilidade por vários motivos, em primeiro lugar era caro, era quebrável e a tecnologia de gravação impunha limites. A chamada Música Popular tem à volta de três minutos cada faixa, porquê? Uma música tradicional, um malhão, pode durar uma hora. A Música Popular está condicionada por um fenómeno de ordem tecnológica, que são os três minutos que dura a possibilidade de captação de som num lado de um disco de 78 rotações e que cria um padrão para a gravação de música, e que durou tanto tempo que ainda hoje, quando já não há razão nenhuma para que isso aconteça, continua a haver o padrão dos três minutos. O primeiro disco que apareceu de música popular com mais de 3 minutos, anos e anos depois disso ser possível, foi o American Pie do Don McLean, que tem seis minutos e tal, o facto da faixa ter seis minutos e tal, e dele não ter abdicado da faixa ter seis minutos e tal, retardou um ano a edição do LP, porque a editora dizia que não vendia, ninguém ia comprar um LP que tinha uma faixa que demorava seis minutos (...)
Se há expressão artística que foi completamente modificada pela evolução mecânica e pela reprodução mecânica foi a música.
Referências bibliográficas
[20] É Jornalista desde 1963. Autor de diversas publicações no domínio do fado, bem como noutros universos da Música Popular, de programas de rádio (‘Crónicas da Idade Mídia, em exemplo, continua a fazer parte da grelha de programação da Antena 1 da RTP) e diversos artigos neste âmbito em Jornais e Revistas. Foi chefe de redacção de ‘’Vida Mundial’’, redactor coordenador no ‘’O Século’’ e chefe de redacção do semanário ‘’Avante!’’ a partir do primeiro número da série legal, director da rádio local ‘’Telefonia de Lisboa’’, membro do Conselho de Opinião da RTP em 2002, responsável pelo ‘’Avante!’’ (órgão central do PCP) de Abril de 1974 a Junho de 1995. A sua actividade política encontra-se em várias etapas do seu percurso profissional com a cultural, tal como se pode apreender na discussão de alguns dos assuntos levantados na recolha de entrevista realizada para o Arquivo Mural Sonoro (encontra-se no acervo online com a Quota MS_00047 Europeana Sounds). Foi membro do executivo da CDE de Lisboa, membro executivo da Comissão Executiva das Festas de Lisboa e da Comissão Municipal de Preparação de LISBOA 94 – Capital Europeia da Cultura (ano em que Amália Rodrigues dá o seu último espectáculo, no Coliseu em Lisboa, sob a programação de Ruben de Carvalho. Tal como refere Joel Pina em entrevista para este Arquivo), deputado à Assembleia da República eleito pelo distrito de Setúbal, Vereador da Câmara Municipal de Lisboa desde as autárquicas de 2005, membro do Executivo da Comissão Organizadora da Festa do «Avante!» desde 1976 e, entre um numeroso conjunto de dinamizações na música e cultura populares, um dos principais responsáveis pela actuação no ano de 1983 do músico, activista e compositor americano Pete Seeger no Pavilhão dos Desportos em Lisboa, que ficaria registado em fonograma acompanhado de um livro e folheto de fotografias. Além de membro do Comité Central do Partido Comunista Português, foi também Vereador da Câmara Municipal de Lisboa desde as autárquicas de 2005 e responsável na Câmara Municipal de Lisboa pelo Roteiro do Anti-fascismo. Entre a variada bibliografia do fado contam-se trabalhos da autoria de Ruben de Carvalho, como são os casos de “As Músicas do Fado” (Campo das Letras, 1994), “Histórias do Fado” (Ediclube, 1999) ou “Um Século de Fado” do mesmo ano e editora.
[21] Nasceu na cidade de Coimbra no ano de 1962, onde acabou por frequentar aulas de violino, instrumento cuja aprendizagem aprofundaria posteriormente - em 1982 - quando se fixa por seis anos em Moscovo para a sua formação em Professor de Violino e Músico de Orquestra. É integrante, e uma das forças motrizes, do grupo Brigada Victor Jara e do GEFAC e foi um participante activo no Movimento Alfa em torno das Campanhas de Alfabetização no ano de 1975. Quando regressou da URSS passou a dar aulas de violino no Conservatório de Música de Coimbra, no qual é hoje Director. Manuel Rocha trabalhou ainda como músico e compositor em bandas sonoras para teatro, cinema e televisão, foi Autor de um Documentário no âmbito etnográfico seriado para a RTP e colaborou em gravações com intérpretes como, entre outros, Adriano Correia de Oliveira, Mísia e Carlos do Carmo ou autores distintos como Fausto ou Manuel Freire. Manuel Rocha mantém o exercício crítico e atento sobre as questões que nortearam o registo da conversa mantida para o arquivo Mural Sonoro (encontra-se no acervo do Portal online com a Quota MS_00015 Europeana Sounds) e assume, ao longo da mesma, a actividade cívico, sindical e política como uma parte imprescindível no seu percurso musical, quer como músico e autor, quer como formador.
[22] Canção de Luis Cília de combate no exílio. O poema é de Manuel Alegre. Foi editada duas vezes em 1965 e em 1971.
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