Faz hoje 40 anos que o meu telefone tocou às 7 da manhã. Pensei em tudo, menos que era para me avisar para não sair de casa porque havia uma revolução. Comuniquei de imediato ao meu Director, cidadão brasileiro, para que ele também não saísse. A seguir, foi um não acabar de chamadas telefónicas, ao mesmo tempo que ia sabendo das notícias pela rádio, entre marchas militares e Grândola Vila Morena. O Zé quis ver para crer, mas eu fiquei em casa naquele que, sem eu saber, era o meu primeiro dia de liberdade.
No dia seguinte, apresentámo-nos ao serviço mas ninguém tinha cabeça para fazer fosse o que fosse. Os escritórios ficavam no Marquês de Pombal ao lado do edifício da Força Aérea. Muito embora os nossos corações estivessem a transbordar de esperança, não era tranquilizador ver pessoal armado em cima do telhado. De tarde, fomos todos dispensados do trabalho e eu mais a Eduarda e a Maria dos Anjos resolvemos ir comprar sandes para dar aos soldados que lutavam pelos nossos interesses desde o dia anterior.
Abastecemo-nos na famosa pastelaria Ferrari, na Rua Nova do Almada, que viria a ser destruída pelo incêndio de 1988, e seguimos para a Calçada de S. Francisco, Rua Vítor Cordon onde, no cimo, avistávamos as traseiras do edifício da PIDE. Distribuímos o almoço e ficámos ali, entre soldados e uma montanha de gente, a ouvir os mais diversos comentários. Falávamos pouco, porque a liberdade ainda não nos corria nas veias. E, subitamente, o ambiente de festa mudou. Do edifício da PIDE começaram a sair rajadas de metralhadora, que caíam não sei onde, emitindo um ruído semelhante à queda de granizo.
Gerou-se o pânico e toda a gente correu para o abrigo mais próximo. Eu, na corrida para um bar, perdi o casaco que tinha pelos ombros e voltei atrás. Fiquei só e, no regresso ao bar, encolhi as costas para não ser atingida por aquelas coisas que eu não via, só ouvia. O bar estava cheio, o silêncio era total até ao despertar da minha consciência. Nessa época, estar enfiada num bar era pecado mortal, eu queria sair dali, queria ir para casa onde o meu marido me esperava. A Maria dos Anjos chorava, dizendo que não arriscava a vida e muito menos o casamento que se iria realizar na semana a seguir. A Eduarda não tinha compromissos, mantinha-se calada.
Até que, na minha santa inocência, tive uma brilhante ideia: “vamos sair de costas para os disparos, as duas vão à minha frente e eu atrás faço de escudo”. E foi assim que saímos do esconderijo e subimos a calçada. Nessa altura, não adivinhava que o dia mais feliz da minha vida iria chegar no primeiro dia do mês a seguir. Foi uma explosão de alegria colectiva, a liberdade entrou-me na alma, rebentou a cápsula que me oprimia e saiu de dentro de mim outra pessoa, mais confiante, mais comunicativa. Os medos dos vizinhos do meu prédio e da minha rua, até da família e amigos, que poderiam ser informadores da PIDE, e alguns eram, desapareceram com a imagem dos cravos espetados nos canos das espingardas.
Passados 40 anos, a minha amiga Eduarda paira algures no universo, a Maria dos Anjos casou e nunca mais soube dela e eu cá vou caminhando, embalada pelo vento da Amadora, na esperança de que, num 25 de Abril ou num outro dia qualquer, aqueles cravos vermelhos renasçam das cinzas.
INFORMAÇÃO ADICIONAL
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Autor - Relator: Maria Clara Andrade Soares Pedro da Costa; Pedro Serra
Testemunha - Contador: Maria Clara Andrade Soares Pedro da Costa
Ocupação à época: -
Região: Lisboa
Data do início da história: 25 de Abril de 1974
Data do fim da história: 1 de Maio de 1974
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